Até o início do século 20, a maconha era considerada um excelente medicamento, quase uma divindade
O uso medicinal da maconha já é realidade em diversos países, como Canadá, Holanda, França e Reino Unido. Nos Estados Unidos, a utilização de medicamentos à base dos princípios ativos da planta também é permitida, mas está restrita a 20 Estados e ao Distrito de Columbia. A pioneira no país é a Califórnia, que desde 1996 aprova o uso dessas drogas para tratar pacientes com Aids, câncer, esclerose múltipla e outros distúrbios.
Atualmente, há pesquisadores dos mais diversos países estudando a ação terapêutica da Cannabis sativa. O médico especialista em psicofarmacologia Elisaldo Carlini é um deles. Criador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde também é professor titular, Carlini vem investigando o assunto há mais de 50 anos.
"Até o início do século 20, a maconha era considerada um excelente medicamento, uma divindade. O médico da rainha Vitória, do Reino Unido, divulgava isso publicamente. Os brasileiros também podiam comprar em farmácias cigarros de maconha importados da França", conta o especialista.
Mais pra frente, na década de 1960, a Organização das Nações Unidas (ONU) classificou a Cannabis como uma droga particularmente perigosa. "Tudo isso foi feito com base ideológica, nunca científica", enfatiza.
Mas como qualquer droga, a Cannabis tem efeitos tóxicos dependendo da forma e da quantidade em que for administrada. Por essa razão, o uso recreativo da maconha, aprovado no Uruguai e nos estados americanos de Washington e Colorado, é desaconselhado pelos médicos.
Sabe-se que o cérebro possui receptores específicos para interagir com delta-9-THC. Na década de 1990, os cientistas também descobriram que o organismo produz uma substância que age sobre esses receptores, a anandamida, que seria como uma maconha endógena. Juntos, eles compõem o sistema canabinoide.
Carlini explica que há hipóteses de que uma alteração nesse sistema, causada eventualmente pelo uso da maconha, poderia provocar distúrbios mentais, embora isso ainda precise ser mais investigado.
O consumo irrestrito da droga também é preocupante porque há indícios de que ela pode afetar transitoriamente a memória e até piorar quadros psicóticos, como explica o médico psiquiatra Ricardo A. Amaral, professor colaborador do Departamento e Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).
Em uma pesquisa realizada recentemente, 57% dos brasileiros entrevistados disseram que são favoráveis a legalização da venda da maconha para fins medicinais. O levantamento foi realizado pela empresa Expertise e consultou 1.259 pessoas pela internet no mês de janeiro.
Atualmente, há uma proposta tramitando no Senado para legalizar o consumo da maconha para todas as finalidades. Ela foi sugerida por um gestor da área da saúde e será relatada pelo senador Cristovam Buarque (PDT-DF). Mais 20 mil internautas apoiaram a iniciativa, que será debatida em audiências na Comissão de Direitos Humanos.
Apesar disso, Amaral acredita que a comunidade médica, de maneira geral, não está preparada para fazer uso medicinal da planta. "Esse tema nunca fez parte do curso regular de medicina", afirma. Segundo o médico, os interessados no tema têm de recorrer à literatura existente e aos relatos escritos. "A realidade do uso medicinal de canabinoides está mais próxima do que muitos imaginam. Mas, infelizmente, até pesquisadores experientes confundem isso com o uso recreativo da planta", declara.